Cara leitora ou prezado leitor:
Esta é a sétima crônica da série “D. Izaura e sua
gente”. Após a apresentação dos adultos em crônicas anteriores, sigo, conforme prometi, com as
histórias da família. Começo com um pequeno causo do pessoal do sobrado, que me contaram. Ocorrido antes de eu conhecer a família, achei que é bastante ilustrativo do relacionamento do grupo e dos costumes da época.
Não tenho a informação do ano exato em que ocorreu o que me contaram. Entendi que foi na década de 1940, após o final da segunda guerra mundial. Pela minha análise, muito provavelmente, em 1946.
Naquele tempo, os moradores de São Paulo, capital,
tinham como passeio de fim de semana e dias de férias, além das praias da
baixada santista, as cidades do interior, especialmente as estações de água,
como Poços de Caldas, em Minas Gerais; Águas de São Pedro, Águas da Prata, Águas
de Lindoia e Serra Negra, no estado de São Paulo.
D. Izaura gostava de passar uns dias em estações
de água. Naquele ano, resolveu aproveitar os feriados de Carnaval em Águas de
Lindoia, levando as filhas e as crianças que moravam no sobrado.
Águas de Lindoia, distante de São Paulo 160 km por
rodovia, já era, naqueles anos, uma estância hidromineral bastante conhecida e
recomendada pelos médicos. Era bastante frequentada por turistas,
principalmente de São Paulo e estados vizinhos, pois oferecia a acomodação em
bons hotéis.
Os rapazes não podiam acompanhá-las, por terem
compromisso de trabalho. Na Pauliceia, o sábado de manhã e a segunda-feira de
carnaval não eram feriados, havia expediente.
Tudo resolvido, preparativos feitos, malas arrumadas, orientação dada às empregadas para a operação doméstica no sobrado, D. Izaura e companhia partiram para passar o carnaval em Águas de Lindoia.
Durante a semana, havia surgido a ideia, entre os rapazes, de aproveitar a folga matrimonial para se divertirem um pouco, durante o reinado de Momo.
Até então, as atividades de carnaval em São Paulo incluíam desfiles de escolas de samba, modestas em comparação com as atuais, e blocos e cordões nos bairros (um deles desfilava na rua Galvão Bueno). Havia um famoso corso (cortejo de automóveis) que, antes da guerra, era realizado na Avenida São João (assisti, quando menino morando na Pensão Brasil, a alguns corsos, extremamente animados); durante a guerra, com a falta de gasolina, o corso carnavalesco foi suspenso; depois da guerra, passou a ser realizado na Avenida Brasil. Nos salões de clubes, hotéis e, até, cinemas, aconteciam os bailes, animadíssimos, com orquestras tocando as marchinhas e sambas do ano e, principalmente, as músicas de maior sucesso de carnavais anteriores, que todos os participantes conheciam e cantavam.
Quanto aos rapazes, depois de algumas conversas, três deles decidiram ir ao baile do Cine Odeon, um dos bailes de elite da cidade.
Posso imaginar o diálogo:
O primeiro: “O que vocês acham de aproveitarmos
para nos divertir um pouco enquanto elas estão fora?”
O segundo: “Nos divertirmos como?”
O terceiro: “É. O que poderia ser?“
O primeiro: “Andei pensando e me informando: o
baile do Odeon no domingo deve ser bem frequentado, animado, boa orquestra. Não
é barato, mas dá para enfrentarmos.”
O terceiro: “Não sei não...”
O primeiro: “Não vamos fazer nada de mais. Vamos
cantar, dançar, pular um pouco, beber um pouco, tudo com moderação, e voltamos
para casa.”
O terceiro: “Se elas descobrirem, estamos
roubados.”
O segundo: “Bem, poderíamos telefonar de casa
antes de sairmos, dar uma de bem-comportados e dizer que vamos chamar outra vez
no dia seguinte. Com a dificuldade das chamadas interurbanas, não vão chamar de
volta.”
O terceiro: “E o fulano, que não está aqui agora?”
O primeiro: “Ele não vai topar, tem programa com a
namorada, mas não vai contar nada para elas.”.
O Cine Teatro Odeon, construído à Rua da Consolação número 40, foi inaugurado em 11/10/1928. Inicialmente com duas salas, a Vermelha e a Azul, às quais se acrescentou a Sala Verde, em 1930. Em 1939, as capacidades respectivas eram: 2.510, 2.020 e 1.675 espectadores (total: 6.205!) . Além de sua atividade de cinema propriamente dita, o Odeon, assim como outros cinemas da mesma época, era adaptado para bailes carnavalescos.
Tendo decidido ir ao baile, passaram aos preparativos. Resolveram usar uma fantasia simples de malandro (camisa listada e calça branca, provavelmente acompanhada de um chapeuzinho estiloso e uma pequena máscara, tipo El Zorro) e combinaram a compra de ingressos e dos suprimentos (lança-perfume, serpentina, confete).
E passaram a aguardar o grande dia.
Quiseram os deuses, porém, que eles tivessem uma grande surpresa: D. Izaura e filhas voltaram a São Paulo, antecipadamente, no dia do baile! A volta estava marcada para a terça-feira gorda, mas imprevistos acontecem: em Lindoia, D. Izaura foi picada na mão por um inseto, o que causou uma forte inflamação, de forma que resolveram antecipar a volta.
Ipso fato, o programa carnavalesco dos rapazes foi
abortado. Eles foram surpreendidos “com a boca na botija”, como se dizia
antigamente.
Agora, caro leitor ou prezada leitora, vou lhe
ficar devendo contar como eles fizeram para ocultar os rastros da programação,
que histórias terão inventado no caso de elas desconfiarem de algo, pois não me
contaram os detalhes do reencontro. Temos de fazer nossas suposições.
Como não houve desquite de casal, entendo que, se algo foi descoberto, possíveis punições para os rapazes devem ter sido leves. Pois, afinal de contas, embora tivessem planejado a escapada, eles não chegaram a cometer delito algum...
Washington Luiz Bastos Conceição
Notas:
1. Cara leitora ou prezado leitor:
Para ler quaisquer das seis primeiras crônicas da série,
clique nos respectivos links abaixo:
1) D. Izaura e sua gente – Introdução
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/02/d-izaura-e-sua-gente-introducao.html
2) D. Izaura e sua gente – A casa e os moradores
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/03/d-izaura-e-sua-gente-casa-e-os-moradores.html
3) D. Izaura e sua gente – Leilah na Galvão Bueno
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/04/d-izaura-e-sua-gente-leilah-na-galvao.html
4) D. Izaura e sua gente – Vovô Juca
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/05/d-izaura-e-sua-gente-vovo-juca.html
5)
D. Izaura e sua gente – Apresentando as pessoas – 1
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/06/d-izaura-e-sua-gente-as-pessoas-1.html
6) D. Izaura e sua gente – Apresentando as pessoas
– 2
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/07/d-izaura-e-sua-gente-apresentando-as.html
***